quinta-feira, 17 de setembro de 2020

setembro 17, 2020 - No comments

Mous(art)

  Quantos ratos estão perdidos na escuridão ? Caíram sem querer em um abismo, aquele que sempre se tromba em algum momento da vida e que é necessário cruzar com cuidado, construindo uma ponte. O rato é apressado, atrapalhado, mas ainda sim considerado muito esperto. Sim, mas quantos não caem na captura de um ser humano com todas as suas tecnologias? 

Tem um rato desses atrapalhados que caiu dentro de um piano. A tecnologia humana nesse caso não foi usada intencionalmente, foi apenas um erro. Foi o abismo dele. Ali, enquanto tinha uma brecha pra entrar, ele foi fuçar. Não sabia o que era. Mas fuçou. Mas a vida surpreende e lhe entrega ao breu total quando a tampa do piano acima de sua pequena cabecinha se fecha inesperadamente. Imagine a sensação de não saber onde está e agora estar trancado no escuro, imagine caminhar por cordas e ferragens estranhas, imagine estar em um labirinto sem saída sem enxergar, sem ver.

Ele sabia que se ficasse mais tempo ali, morreria. Já sentia fome, sede e arrependimento. Se sentia burro e nada esperto como dizem por aí sobre os ratos. Era momento de deixar as emoções de lado e começar a procurar por uma sáida. O rato caminhava e roía vários cabos, e botões, e as divisórias de madeira e enquanto o fazia, alguns sons eram proferidos pelo piano. O rato se asustava em como o barulho ecoava e tremia tudo por dentro do piano. Pensava que alguém poderia estar o escutando, e se alguém tivesse a curiosidade de abrir a tampa do piano, ele poderia escapar para fora. Era isso! Ele era um rato esperto!

Realmente tinham pessoas do lado de fora o escutando, mas infelizmente, nem por um segundo elas pensaram em abrir a tampa do piano. O que eles viram foi um piano tocando sozinho! Isso era mágico? Místico? Era um espirito tocando? Eis uma coisa sobre os humanos que aprendemos nessa história: diante de um fato que quebre todas as suas crenças, as pessoas ficam irreconhecíveis. Pouco importa a natureza do som, o que importa é que temos um piano mágico e isso ninguém tem! Óbvio, a cabecinha humana procura por todos as explicações racionais, mas se essas pessoas tivessem acreditado nos seus pensamentos lógicos, o rato estaria a salvo. O universo não ajudou o rato de novo.. Ele não sabia, mas o piano era velho, seu baú era alto, as pessoas da casa não sabiam nada sobre pianos. Ele escutava vozes, e tocava mais, puxando as cordinhas com toda sua força, porém nenhuma resposta externa ele recebia, além de vozes e mais vozes. Cada pessoa que escutava chamava outra pra escutar. Chamou-se irmãos de dentro dos seus quartos, chamou-se tios, primos, chamou-se o cachorro e o gato. Tudo que sabiam era comentar, e se assustarem. O irmão do meio, metido a esperto e inteligente sacou: "tem algo lá dentro!" É uma pena que ratos não entendem humanês... Abriram a tampa, a luz entrou, o rato se sentiu aliviado. Tentou subir ao topo, não tinha forças, pois usara tudo pra tocar. Não tinha forças também porque lá estavam as cabeças de vários humanos olhando, sabia naquela hora que morreria. Ninguém o ajudaria. Ele estava no fundo do poço, do abismo dele. Se perguntava o porquê, não tinha resposta alguma. Nem dentro dele, nem fora. Era uma lição do universo ? Foi porque ele não foi prudente? Não escutou sua intuição? Ele permaneceu, mesmo com a tampa aberta. Mas luzes eram jogadas na sua direção, ele só se escondia por onde dava. Desistiram de pegar o rato. Ele sentiu que era a hora dele morrer. Ele tocou mais piano, não sabia como fazê-lo, mas fazia. Não porque queria chamar atenção, mas porque foi tomado por uma melancolia e um tédio: esperar a morte. Apenas o som inédito daquele piano o consolava. Ele morria pra essa vida não mais como um ratinho nojento, mas como um músico, que prendeu a atenção de muitos humanos por um pequeno espaço de tempo, e isso foi recompensador. Não entendeu na hora, mas esperando a morte teve tempo de pensar: "eles me viram, me ouviram, eu não estou anônimo como aprendi a ser, as pessoas sabem da minha existência e ainda sim eu estou protegido da crueldade humana." Era assim então que se sucedia os pensamentos do pequeno rato, ele se alegrava no meio do seu abismo.

Ele tocava o que podia, até onde aguentava. Roía o sistema do piano por completo, isso o libertava. A canção comia solta enquanto ele se despedia dessa vida em frenesi, dançando e girando, era só o que tinha pra fazer. Sim, ele não era mais apenas um rato, ele pra sempre seria conhecido como o rato que caiu no piano e enganou a todos! Seria conhecido como o rato que uniu a família, que a fez rir criando teorias doidas. Era o rato músico! Isso nenhuma casa tinha. Isso nenhum rato tinha sido. Esse era agora um rato livre. Livre de uma vez por todas da vida medíocre de um rato de esgoto. Livre da dificuldade de viver, até torna-se um com a escuridão e partir para todo o sempre. 

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

setembro 16, 2020 - No comments

I have reasons enough to believe in fate

 

Eu tenho razões suficientes para acreditar que o destino permeia a vida de todos e tenho a impressão de que todos sabem disso também em algum nível. 

Lá está a Roda da Fortuna, identificada em várias culturas e interpretada em vários mitos, nos quais a Roda é controlada por uma mente superior, por fiandeiras ou por deuses. Mas no geral, entende-se que a Roda da Vida é uma vontade desconhecida do Universo na busca por equilibrio, para que os eventos, que já não são por acaso, possam ser dirigidos em uma realidade na qual cada um faz o seu papel. 

A discussão do "Destino" é complicada no meio filosófico e principalmente no meio acadêmico, que é demasiado racional para acreditar que realmente exista um fluxo de acontecimentos pré-determinados na existência e todos pendem muito para a discussão do livre arbítrio. Ao meu ver, a existência do destino não anula o livre arbítrio, já que somos pequenas partes de um Todo Universal e, levando em conta que determinadas coisas precisam acontecer, é nossa função escolher, de livre e espontânea vontade, como iremos executar o papel que nos cabe nessa Ordem. 

De fato, a maioria dos seres humanos ainda estão tentando responder a pergunta de quem eles realmente são, e por isso o Destino se trata também da alquimia da alma, ou seja, a transformação ou maturação do que o ser é. O próprio autoconhecimento.

O destino é uma necessidade cega, quase sempre desconhecida, que domina o indivíduo, levando-o a se estabelecer em um papel adequado para ele no universo em que vive. É como se fosse a adaptação perfeita de cada um ao seu devido lugar ou à sua função no mundo, compreendendo que cada ser é feito para fazer aquilo que faz. 

Cumprir o destino está quase diretamente ligado ao autoconhecimento. Ao fazer a alquimia interna, é possível realizar a alquimia externa e acompanhar o fluxo criativo do universo. O que isso quer dizer, em essência, é "conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses."

E todo dia eu compreendo mais sobre o que é o Destino, embora eu tenha tentado racionalizar apenas uma única vez, há alguns meses, ainda com o encanto de alguém que teve uma epifania que explicava vários acontecimentos da sua vida. Agora sinto que é tão óbvio e que só olhei para algo que sempre esteve ali. Ao compartilhar esse assunto com meus irmãos da Arte, me senti tola por chegar a essa conclusão tão tarde, mas talvez eu não tenha sabido transmitir o que isso significava pra mim de verdade naquele dia.

Quando reconheci que certas coisas na minha vida estavam esperando que eu me trabalhasse para que pudesse assumi-las, tudo pareceu muito mais importante. E o conhecimento desse Destino me trouxe a vontade de trabalhar nessas coisas com prazer, já que se tudo que vivi convergiu para esse momento, significa que é exatamente esse o papel mais adequado pra mim.  Ter o conhecimento teórico e usá-lo para explicar o que é o Destino na verdade pode não ser o suficiente para a compreensão real desse conceito, já que talvez ele só venha a ser entendido por meio da mudança de percepção. Já viu aquela frase "aceite o seu destino" ou "embrace your destiny"? então, simplesmente eu o compreendo e o aceito, só isso muda todo o curso da minha vida. Como posso não ficar feliz com isso mesmo que ainda haja dores e tristezas no meu caminho? Também faz parte aceitar que nem tudo é luz. Meu pai espiritual diz que eu tenho que dar o melhor em tudo que eu faço e então, como eu poderia, depois de entender meu destino e abraça-lo, não me empolgar diante de tal função? 

Sinto de verdade não ter tido a capacidade de demonstrar o que eu estava sentindo aos meus irmãos naquele dia. Ainda arranquei uma pequena gargalhada dos mesmos quando disse que o Destino era dos mesmos produtores do "nada acontece por acaso". Mas esse é um assunto que não os empolga mais e, tudo bem. Não espero estar empolgada com algo tão simples ou óbvio daqui alguns anos. Não há como olhar para uma mesma coisa ainda com a inocência de uma criança quando você se acostuma com essa verdade. Mas espero também nunca esquecer de onde vim e pra onde eu vou, mesmo que o futuro seja uma icógnita. 

 


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

setembro 10, 2020 - No comments

Dom e Myra

O dia em que o músico tocou de maneira mais triste foi quando ele viu a pessoa que ele amava sorrindo para outro homem na pista de dança. Embora não parecesse triste aos que o ouviam, em seu coração sabia o que sentia e, como músico, sabia também que não poderia deixar de cantar como havia prometido ao público e à pequena discoteca que havia lhe contratado. Dom disse para si mesmo "irei cantar de maneira feliz, mesmo que meu coração doa, ainda sim poderei vê-la dançar. Talvez assim, ela olhe para mim." 


Dom e Myra eram amigos a pouco tempo. Naquele dia ela tinha se arrumado impecávelmente porque tinha decidido apenas sorrir. Estava com um vestido xadrez rodado que tinha ganhado da vó, um par de sapatos deslumbrantes demais para o vestido simples e os adornos em seus braços estavam exageradamente brilhosos. Dom tinha usado sua melhor roupa, mesmo que ela fosse ainda sim bem surrada. Não havia penteado seu cabelo como de costume, nem limpado suas botas antes de sair de casa. Ambos não eram estilosos, mas eram pessoas muito inspiradas e artísticas por natureza. Myra era poeta sem se reconhecer como uma, falava poemas o tempo todo.

O salão, ah! Estava decorado com uma grande rosa no palco e dava para sentir o cheiro de perfumes misturados, os melhores! Era um desses fins de semana super badalados no qual todos os jovens costumam sair para procurar diversão. 


Myra não esperava que Dom fosse tocar naquele dia. Ela já conhecia algumas músicas suas e tinha o sonho de cantar com ele um dia, mesmo sem a voz bonita, ela era apaixonada por música. Amava ouvir e conhecer de tudo, mas nunca teve talento para nada disso. Quando ele começou a cantar, ela foi embalada pelo som contagiante e dançou livremente pela pista. Esse era um tipo de festa em que as meninas não costumam dançar muito tempo sozinhas, mas Myra, com seu nariz pontudo e seus dentes tortos achava que não era bonita o suficiente para ser cortejada. Dançou por muito tempo sozinha até que avistou um homem igualmente sozinho, olhando para ela com uma certa vergonha. Aquele tipo era o par parfeito que Myra sempre escreveu em suas poesias, o homem alto, de cabelos negros caídos no ombro e um rosto impecável. Não percebeu que Dom também estava olhando para ela enquanto cantava, ele apenas gostaria de estar lá com ela. Como ele poderia tocar e estar com Myra ao mesmo tempo? Cantou com dor. "Meu amor pela música é maior do que a vontade de estar com ela?"

Ele cantava "bye.. bye... miss American Pie...this'll be the day that I die" e todos podiam dançar até morrer.


Dom nunca teve tempo para namorar porque estava em amor sempre com seu violão. Sua paixão era criar, mas nunca havia experimentado o amor... Muito menos ligado para isso. Não entendia como "vivia sem amor" como seus amigos diziam. Mas aquela noite ia mudar tudo. Myra só estava esperando sua hora também, mas nunca chegava. Seus poemas orais eram sempre inspirados pelas ilusões que ela alimentava em seu coração. Dois criadores se encontraram naquele dia e não poderam se tocar, porque simplesmente não sabiam.


Myra dançava mais calorosamente e Dom olhava apenas pra ela. Ele quase mudava a letra da música para "myra myra Miss Myra till the day Myra Die"... de tanto tentar resistir a falar o nome dela, já bebâdo das doses que tomara antes de subir no palco, ele disse.. "Myra, olha pra mim!". A música parou com o susto da mudança repentina de letra e Myra finalmente olhou para ele. Dom pensou em se declarar, mas não sabia como fazer isso. Não sabia se ela gostava desse tipo de coisa. Ela já estava completamente constrangida nesse momento. Todos pararam de dançar e olharam para ela. "Então essa é a guria que cortou nossa dança!". A música tinha 8 minutos!


O poema do momento foi o mais bonito. Tanta coisa passou na mente dos dois. Corações batendo forte, o ritmo das batidas sincronizados, epifania: será que ele gosta de mim? Lembro daquele olhar... Não! São só meus poemas. Eu já estou afim de outro!"


Myra sabia que não tinha ligado pra ele. Porque ela queria aquele homem. Queria que o outro tocasse nela como a música de Dom a tocava. Dom só queria tocá-la ali também e agora se sentia apenas constrangido. Existia um abismo entre os dois, havia paredes de ilusões, semeadas no cimento da resistência e reforçada duas vezes com a lerdeza de ambos. Falta de se conhecer! Eu vi tudo, eu escutei tudo. Dom contou para mim depois do show, quando bebia tranquilo enquando Myra conversava com outro homem. 


Sabe por que esse dia foi tão lindo? Porque olhando fixo nos olhos de Myra, ele cantou... "bye.. bye.. miss American Pie...this'll be the day that the music died". A música voltou aos poucos, porém calma. Myra sorriu para ele, mas desviou o olhar para o outro homem. Ele a chamou para dançar devagarzinho e com pouco tempo de música eles se beijaram. Dom descobriu a essência de sua música... Ele sentiu que poderia controlar o comportamento das pessoas através dela. Ele descobriu que música era magia e que poema também era, porque ela havia feito ele se comportar diferente quando a viu dançar e sorrir, com vestido xadrez da vó. Doeu, mas Dom foi infinitamente livre, pois ele amou ainda mais sua música: ela era capaz de fazer alguém alcançar seus objetivos! A encontrar seu ideal... que não era ele, mas ele tinha alcançado seu ideal também: contagiar as pessoas. Amando a música ele conhecia a magia de amar a si mesmo.

Quando vi que Dom era um homem completo a partir dali, eu pensei que nao poderia mais completá-lo como esperava. Sempre amei Dom, antes mesmo de ele conhecer Myra. Somos amigos a tanto tempo e, eu sabia que ele pensava nela a todo tempo. Doía em mim também, pois aprendi a gostar de seu cabelo bagunçado e de suas músicas espontâneas que ele fazia em momentos aleatórios. Minhas ilusões foram quebradas, diferente deles ali. Foi quando percebi a importância da ilusão, ela dá esperança, dá força e provoca emoções dentro da gente. 


Eu não pude mais amar da mesma forma nesse dia. Eu entendi a verdadeira face do amor. Dom veio até mim e bebeu várias doses me contando essa história. Não sei se desejo mais conquistá-lo, porque a partir do poema Myra, eu entendi que devia me amar primeiro, para um dia, quem sabe... Dom cantar para mim. 


Essa história foi inspirada na musica American Pie, de Don McLean.

https://www.youtube.com/watch?v=iX_TFkut1PM