

Uma sociedade feminina criada por "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen
"Orgulho e Preconceito", um livro de Jane Austen de 1813 e depois transformado em filme por Joe Wright em 2006, foi uma obra que inspirou diversas mulheres durante e após seu lançamento, sendo uma obra que reverberou fortemente na sociedade no período moderno e pós-moderno.
Segundo o Jornal da USP, a obra "traz de forma sútil questões sobre a posição da mulher na sociedade, sobre desigualdade de renda e preconceito de classe". Temas relevantes para a sociedade da época e que se mantiveram constantes no período atual pelo incessante conservadorismo que mantêm a mulher em um papel de gênero que está sendo constantemente questionado. Este fato é expressado no papel de Elizabeth Bennet, que se recusa a se casar com qualquer pessoa, sendo levada ao casamento inevitavelmente por meio de uma paixão avassaladora.
Suas irmãs, no entanto, revelam traços marcantes da época, os quais pregavam que a mulher deveria se casar assim que possível, com uma família importante (de preferência rica). Elas vivam por isso e pensavam somente nisso, uma marca fortíssima do Romantismo. É totalmente plausível dizer que a sociedade atual nunca superou o Romantismo, sendo uma escola literária e artística que foi levada a outros patamares, principalmente para o audiovisual por meio de novelas e filmes. Não só isso, o romantismo foi cristianizado e continua sendo defendido, mesmo que a sociedade atual não consiga mais abarcar tais padrões dentro dos relacionamentos. Agora o que se vê são os relacionamentos sendo taxados pelo tão famoso termo cunhado por Bauman: amor líquido.
Em uma sociedade que não consegue superar o romantismo, tão fortemente empurrado guela abaixon por meio da cultura, e ao mesmo tempo não consegue se localizar de forma individual no que se tornou os padrões de relacionamento atual, o heteropessimismo (sentimento de desilusão, constrangimento ou desesperança em relação a relacionamentos heterossexuais) misturado com esses antigos ideias resulta em uma substância perigosa de se digerir.
O que é uma sociedade feminina criada por Orgulho e Preconceito? Uma sociedade formada por mulheres que ao mesmo tempo que convergem para a libertação dos papéis de gênero e para a ampliação de formações acadêmicas e inserção no mercado de trabalho (o que consequentemente tende aumentar as rendas das mulheres e a posição em cargos de liderança), ainda se sustenta em ideais amorosos, nos quais se espera um cavalheiro que trará uma paixão avassaladora e mudará os rumos do heteropessimismo que a mulher se encontra. Muitas vezes o heteropessimosmo é uma consequência, mas outras vezes é uma escolha; independente de como a mulher chegou lá, acredito que a maioria das vezes ela não quer estar nesse lugar, afinal, é normal que as pessoas queiram se relacionar.
O heteropessimismo é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo que aprisiona pela desilusão e pela desesperança, se cria o anseio da evasão. É neste momento, talvez, que ainda se espera pelo Mr. Darcy, o cavalheiro diferente de todos, que mesmo com sua imperfeição, é passível de mudança e que promete o futuro que sempre sonhamos. Penso como seria se o pessimismo nos ensinasse outra coisa e nos tornasse mulheres mais maduras em vez de desistentes. Penso também como seria se as obras (livro ou filme) nos mostrassem como foi o casamento de Elizabeth com Mr. Darcy, já que ela era uma mulher tão destemida e inteligente e ele um homem tão rígido e de poucas palavras. Ela, uma mulher acostumada a brincar e se divertir com suas irmãs, a ser tão útil em casa cuidando dos animais, que sujava as botas e não se importava em andar muito. Que gostava de ler e dançar nos bailes. Ele, um homem rico acostumado a lidar com transações burocráticas, tão conservador com as maneiras de se fazer as coisas, acostumado a ser fechado pela constante solidão que sua riqueza trazia e a sempre estar tão acima dos outros. Penso que talvez o casamento deles não tenha sido tão bom como todas nós que lemos o livro e assistimos o filme gostaríamos. Fica no nosso imaginário o cenário do casamento perfeito que as obras transmitem e não queremos nos questionar o que deve ter sido depois.
Fica para as mulheres modernas lidarem com a consequência do "depois". Lidamos com o "depois" dos nossos pais e do nossos próprios. Sucessivos "depois". Porque sempre achamos que encontramos nosso Mr. Darcy, mas aí eles são uns bostas. O "depois" também não leva em conta uma série de fatores, principalmente o fato de que muitas pessoas não conseguem se relacionar com uma pessoa só e existe essa insistência de que somente de olhar para outra pessoa você já está traindo. Então muitas vezes não olhamos para coisas cruciais que estão implícitas em se relacionar com uma pessoa. O problema está em se relacionar com uma pessoa levando na bagagem só a ilusão e muita fé de que vai dar certo.
O romantismo trabalha com o impossível, não atoa suas obras mais famosas estavam ligadas a diferenças de classe, idade, esferas sociais e a personagens que se apaixonavam por pessoas já casadas. É nessa impossibilidade que sempre se encontroa o perigo: o objeto amado não é alcançável, o que resulta em morte ou sofrimento; quando é, nos ensina que com pitadas de humilhação, ilusão e grandes doses de esperança, conseguimos o que queremos. No universo feminino as consequências disso são avassaladoras: resulta em relacionamentos tóxicos, violência contra a mulher e feminicídio. Entre outros tipos de abusos que destroem completamente o psicológico da vítima.
Isso me leva ao seguinte questionamento: se os antigos padrões romancistas estão caindo por terra diante da constante desilusão que atinge homens e mulheres ao se relacionarem, o que são os relacionamentos hoje? Não podemos, infelizmente, rotular somente como "amor líquido" e não procurar ferramentas que diminuam o nosso sofrer; não podemos também em hipótese alguma tentar retornar aos padrões conservadores que tanto os cristãos valorizam e que aprisionam mais as mulheres do que os homens, valores que, inclusive, são tão defendidos por homens e não seguidos e que mulheres constantemente tentam se subjugar para não serem preteridas. A falácia do casamento perfeito caiu por terra e é normal, para nós mulheres, conhecermos por meio de outras mulheres, como elas estavam em estado de sofrimento antes de acabarem seus casamentos e encontrarem, infelizmente muito tarde, sua libertação e de sentirem que perderam muito tempo de suas vidas.
Escrevo esse texto em um contexto atual de um relacionamento saudável e não monogâmico, que questiona constantemente as minhas crenças romancistas, ainda mais que fui criada por Jane Austen e por novelas e filmes que muitas vezes nem eram de romance ou de comédia romântica. Penso: num relacionamento que converge contra os padrões romancistas e não me promete o casamento perfeito, mas me instiga a lidar com a realidade de que tanto eu como meu parceiro sentimos atração por outras pessoas, que me instiga a lidar com o real e com o "depois" já no começo, o que espera-se desse relacionamento? É como um eterno futuro branco, apagado, que os filmes nunca me entregaram. Um futuro que o heteropessimismo e o amor líquido nunca me disseram. Que pode haver fim, como pode não haver também. Que em vez de fim, pode haver transformação e libertação, em vez de sofrimento e o constante lidar com o impossível. Como diz uma letra do Incubus "o amor dói, e às vezes é uma dor boa, que faz eu me sentir vivo", penso como é se sentir vivo apenas pelo prazer de ser dentro do amor e não por lidar sempre com dor.
A não monogamia me oferece coisas que eu sempre quis, mas é um caminho que todos nós estamos tentando criar como alternativa para nos sentirmos vivos. Tento virar a chave da minha cabeça: abandonar o romantismo nada mais é do que abandonar a cultura que estou inserida. Do mesmo jeito que aprendi, posso desaprender. Logo hoje, que conheci meu Mr. Darcy, mais perfeito do que o do livro, não rico, mas da mesma classe que eu; não sério e duro, mas divertido e brincalhão, que me ama, eu, sendo melhor do que Elizabeth Bennet, tão destemida quanto, mas numa sociedade que posso ser mais. Devo abandonar o ciúmes e a crença que criei na minha cabeça de que o casamento deles foi perfeito, assim como o meu seria, sem compartilhar pelo medo de perder, já que enfim o encontrei. Nesse caminho, penso o tanto de coisas que perderia ao abandonar o romantismo, mas depois desse texto, penso como seria bom deixar ir aquilo que aprisiona a mim e outras mulheres e dar lugar ao futuro que eu posso criar. O medo do desconhecido é tão grande, mas acho que tenho mais medo do que já conheço: essa onda infeliz de romantismo que se instalou na sociedade e que só tem um fim, que é a morte - figurativa ou real.