quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

fevereiro 03, 2021 - No comments

O que aprendi com Clube da Luta

 

 

Um dia eu fui alguém que estive espiritualizada demais buscando elevação mental e pensei que isso se tratava de abandonar a vida terrena. E eu descobri que a espiritualidade nesse sentido não se trata de fugir das coisas mundanas, mas por meio delas consegui desvendar a dádiva que elas possuem. Clube da Luta é uma grande discussão sobre a normalidade e o fundo do poço, sobre o consumismo e sobre ideais que não podem ser vendidos, sobre o fazer e trabalhar fora do sistema dominante, sobre ser o filho rejeitado de Deus. Enquanto muitas pessoas estão buscando se purificar da toxicidade do mundo, a filosofia de Clube da Luta é que é justamente aceitando o pior que se pode realmente ter alguma ascensão. E não funciona assim? A ascensão verdadeira não é uma escalada ao topo do mundo, mas sim ao mais fundo dele, que é ir justamente ao fundo de nós mesmos?

Podemos encarar isso como a aceitação da verdade? Essa que sempre é caracterizada como “dura”, que machuca e dói. A existência de Tyler Durden é um constante desafio para qualquer pessoa que cruze seu caminho. A parte consciente desse alter ego, o protagonista do filme ali, era uma pessoa que já tinha desistido e se rendido a sua limitação. Ele se perdeu de si mesmo, é uma pessoa que se conhece superficialmente e que infelizmente se rendeu ao “que tipo de mesa me define como pessoa?”

Ele realmente achou que a única coisa que poderia resolver seus problemas era chorar no peito de alguém, se abrir para a positividade do mundo e as meditações guiadas com pacientes terminais de câncer. De fato, foi a única forma que ele achou para extravasar sentimentos, mas ele nunca pertenceu ali, porque aquela não era a realidade dele e não foi feita para ele. De qualquer maneira, a assimilação dele com a energia de pessoas moribundas é muito real, até porque a sua insônia o faz ficar “entre mundos”, sem ter a sensação de vida. A questão é que esse sempre foi um escapismo para algo que ele nunca conseguiu entender e mudar em sua vida. Por isso ele agarra isso com unhas e dentes diante da ameaça de ser exposto, quando Marla Singer aparece.

Há muitas teorias de que Marla Singer é também uma personalidade dele, de que ela não é real, mas sim igual ao Tyler. Sendo real ou não, Marla também tem uma função importante: ela é mais uma moribunda que abarca as projeções dele. Ela é o que ele rejeita em si mesmo. Ela perturba o senso de segurança e controle do protagonista, até ele perder esse senso por si só.

Diante da ilusão de estar sendo curado, recuperando seu sono e tendo mais saúde, ele está na verdade cada vez mais morto.  E a partir dessa morte é que é possível que o Tyler assuma de vez a sua consciência, que antes agia surdino na noite, sendo sempre negado inconscientemente. Quanto mais nossas rejeições vão sendo jogadas ao fundo, mais chances temos de agir igualzinho o protagonista do filme, criando alguém que faça por nós, que aja por nós. Não é atoa que o Tyler é um “alter ego”. EGO.  Um outro eu, que não necessariamente é como nós, mas no fundo é sim. Muitos, na perspectiva do filme, vão chamar isso de esquizofrenia, e de fato em termos psicológicos o é. Mas como é arte, quem assiste produz sempre um sentido diferente do que quem fez quis passar, e também vai produzir um sentido diferente de outros que assistiram. Pra mim, esse processo é a sombra. Aquilo que tanto rejeitamos, mas que somos muito próximos de ser. A projeção das nossas rejeições no outro. O nosso não ser, sendo. A nossa hipocrisia diária de apontar um dedo para a frente, sem perceber que os três outros dedos da sua mão estão apontando para você de volta. Mas algo me leva a pensar que Tyler não seria só a projeção de suas rejeições, mas também um deus interior que o guia à limpeza de sua toxicidade mundana justamente levando-o a encarar tais defeitos. 

Dessa bagunça interna do personagem, nasceu Tyler, que o matou para que pudesse assumir a direção da sua vida. Tyler pra mim nunca habitou somente dentro dele. O Tyler é um alter ego coletivo, tanto que ele consegue montar um exército e ser o mestre para cada um daqueles homens. O personagem protagonista é só uma representação da coletividade, da como a crise moderna afeta o indivíduo. Fica naquele jogo de IN e OUT, o que acontece dentro e como isso reverbera no externo. Por isso o filme como todo é genial, porque ele vai abarcar as demandas de muita gente que assiste.

E acho que o grande ponto alto do filme não é exatamente como Tyler se criou, mas o que ele faz. Ele simplesmente conduz um homem à sua destruição, atendendo à uma necessidade desse mesmo homem. É o impulso de morte e transformação que o guia, é uma jornada iniciática.  Ele recruta as massas, porque a dor desse homem é uma dor conjunta. É por isso que eles se reúnem para se baterem. A porrada voluntária, de quem dá e quem recebe, é um meio de expressão da pressão que eles sentem em subir na vida, em ter uma vida sob os moldes capitalistas e vender suas almas para os negócios. A porrada é o próprio lapidar do ferreiro, que esculpe homens mais fortes. Tyler representa o ódio, a necessidade de revolução, a aceitação da verdade. Ele é o renegado, o habitante das sombras, o que permanece nas margens.

O que mais me toca nesse filme não é exatamente a criação do Clube da Luta e a propagação do mesmo, mas sim a relação intima que o protagonista tem com o Tyler. É por meio dos diálogos e da forma de viver que ele assume que é possível perceber como ele precisava só de um empurrão pra ser tudo que sempre quis ser. Mas a lapidação da alma desse homem é cheia de desafios e ampliação de horizontes. Quando você sai do centro e passa a ver tudo distante, além do que era possível enxergar em sua rotina, novas percepções afloram.

Então esse homem passa da posse de tudo, para a posse do nada. Ele simplesmente joga tudo fora pelo que ele criou. É o próprio despir-se na jornada. E o tempo todo pensamos que ele só está sendo influenciado, mas quando descobrimos que Tyler é ele, é possível entender que essa é uma necessidade de alma. É uma verdadeira vontade. Isso tudo vai além de possuir coisas materiais. E é essa uma grande lição que tenho com esse filme. O perder tudo se trata do processo de descontrução para abrir espaço ao que realmente importa. Nos apegamos a coisas e pessoas que não nos fazem bem de modo que é quase impossível deixá-las. “As coisas que você possui, possuem você”, e essas coisas que "possuimos" nos escravizam. E no tempo em que todos pregam liberdade, esse filme traz o que ninguém quer ver: que ser livre é muito mais doloroso do que parece, e se trata mais de perdas do que ganhos.

Muito desse processo é dificultado pela necessidade desenfreada de controle, e a maior parte do filme fala disso sem que percebamos exatamente. Ele é um homem que tenta o tempo todo estar no controle, mas ele nunca o teve de fato, já que nem sobre seu sono ele consegue impor algum tipo de regra. Ter poder e controle sobre as coisas a sua volta é algo que muitas pessoas estão tentando conseguir, mas é isso que as pessoas tanto falam que é ilusório: "o controle é uma ilusão". Por isso as tentantivas de controlar o mundo a sua volta são tão falhas, porque o controle real só pode ser aplicado sobre si mesmo.

 

Nessa cena ele percebeu que o projeto Clube da Luta se tornou o Projeto Destruição e que ele perdeu o controle total da coisa. Tyler tira as mãos do volante e ele tenta desesperadamente tomar a condução do carro, como se estivesse fazendo na sua própria vida, mas não acontece. Essa cena do acidente de carro é só uma metáfora pro controle. A cada cena que transcorre no filme ele vai perdendo mais e mais o controle sobre si mesmo. A transformação é maravilhosa e, por se encontrar nesse estado de ascensão, ele pensa que está com todo o controle das situações. Mas como o próprio Tyler fala pra ele: “você está tendo uma iluminação precoce”. Quando ele diz que é patético ele tentar segurar o volante, é porque ele sabe, antes mesmo de nós e antes mesmo do protagonista, que ele já perdeu totalmente o controle da sua vida. A condução para o fundo do poço é encarar a verdade interna e a verdade externa. Clube da Luta sempre está fazendo isso, falando sobre a sociedade ao mesmo tempo que fala dos processos individuais. Criticando sempre ambos. Reformulando sempre ambos.

O enfrentamento da verdade, a perda do controle e das posses, tudo isso implica dor. A dor junto com tantos outros sentimentos “negativos” dá vasão para o escapismo. Não somos ensinados a lidar com a dor, simplesmente precisamos nos virar. E em Clube da Luta há mais um espaço para isso, na cena a qual eu qualifico como uma das melhores cenas e em especial a minha preferida:

Quando Tyler Durden joga solda cáustica na mão do nosso não nomeado protagonista.

Essa cena é importante porque ela materializa a forma que a humanidade lida com a dor. A fuga da dor é real. Temos, a nossa disposição, milhares de formas de executar essa fuga. O mundo é um constante “ignore isso e tudo ficará bem”, porque achamos que a dor é inútil, que ela simplesmente não deve ser sentida. E então Tyler vem novamente para fazer o papel de diabo e te coloca em uma situação que você não consegue fugir mais disso. Sentir dor é inevitável!

O caminho do autodesenvolvimento está cheio do “primeiro, você precisa desistir”. Eu percebi que a desistência é o encerramento de ciclos e comportamentos que não cabem nas situações atuais que a vida traz. É o deixar ir; abandonar velhos conceitos que não servem mais. É parar de resistir ao processo de lapidação. A aceitação da verdade implica em um abandono do apego à ilusão. O momento que ele joga a solda caustica na mão é só mais uma metáfora das situações dolorosas as quais costumamos fugir. A dor não faz parte do processo espiritual de luz e positividade que pregam por aí. O autocontrole talvez se trate mais de você se conhecer e manter a consciência firme em momentos de crise do que manter controle sobre os desdobramentos dos seus atos. Primeiro, você precisa parar de segurar, precisa parar de se debater. É só aí  que vem uma transformação real.



AMÉN